O Dilúvio aconteceu?
Castigo divino ou catástrofe natural? Há indícios cada vez mais fortes de uma enchente terrível na região do Dilúvio bíblico.oi uma praga e tanto. Deus viu a terra cheia da violência dos homens e decidiu puni-los com uma chuva copiosa e torrencial. Choveu sem parar durante 40 dias e 40 noites e o mundo ficou inundado. As águas afogaram todos os humanos e animais, exceto aqueles que se refugiaram na arca de Noé. Depois que as águas baixaram, Noé desembarcou no Monte Ararat (na atual Turquia) e todos saíram da arca para se multiplicar novamente.
A história do Dilúvio está narrada na Bíblia em quatro capítulos do Gênesis. Mas será que ele aconteceu de fato? Aos olhos da ciência, provavelmente sim. Pelo menos é o que dizem William Ryan e Walter Pitman, dois oceanógrafos americanos da Universidade Columbia. Para eles, a partir da análise de fósseis e sedimentos marinhos, o dilúvio foi uma invasão colossal do Mar Negro pelas águas do Mediterrâneo. O fato teria ocorrido cerca de 7 500 anos atrás, como consequência do degelo das calotas polares do último período glacial (há cerca de 12 mil anos).
O gelo derretido elevou o nível dos oceanos e rompeu uma barreira natural que impedia a passagem da água do Mediterrâneo para o Mar Negro (que era de água doce). O nível deste subiu 15 centímetros por dia e, em três anos, ficou 150 metros mais profundo.
Nas tradições dos povos antigos, no entanto, existem inúmeras narrações de dilúvios causados por uma ofensa dos homens a uma divindade.
Dilúvios regionais
Os cientistas não acreditam que houve um único dilúvio universal, mas, sim, que muitos povos guardaram a lembrança de um dilúvio local e a repassaram num sentido mais amplo. A história bíblica da Arca de Noé, nesse caso, é somente a mais conhecida no mundo ocidental. Só que, para teólogos e historiadores, o dilúvio não passa de uma representação simbólica, sem ligação com nenhum evento histórico que possa ter ocorrido há milhares de anos.
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Pintura de Isaías na Sacristia de São Marcos, no Santuário da Santa Casa de Loreto, por Melozzo da Forlì, cerca de 1477 (Sailko/Wikimedia Commons)
Um achado arqueológico pode confirmar a existência de um personagem descrito na Bíblia. Um profeta teria previsto a vinda do Messias. No entanto, não há registro da existência dele, a não ser em textos bíblicos ou religiosos. Agora, pesquisadores da Universidade Hebraica em Jerusalém reportam ter encontrado um artefato que pode ser uma evidência de que o personagem chamado Isaías era realO selo encontrado pelos arqueólogos tem o nome Yesha’yah (a versão hebraica de “Isaías”) ao lado de uma palavra que não está completa; o artefato em questão está danificado. O nome é seguido das letras nvy. Não se sabe se a palavra escrita terminava com a letra hebraica aleph, o que formaria a palavra “profeta”.
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(Biblical Archaeology Review/Reprodução)
O achado arqueológico estava próximo do selo do rei de Judá chamado Ezequias–que governou de 727 a 698 a.C.–, de quem Isaías era muito próximo.
“Parece que descobrimos uma impressão em selo que pode ter pertencido ao profeta Isaías, em uma escavação científica e arqueológica”, de acordo com Eilat Mazar, autor principal do estudo na Universidade Hebraica de Jerusalém.”Se o selo pertencer mesmo ao profeta Isaías, não seria uma surpresa descobri-lo perto do que contém o nome do rei Ezequias, dada a relação simbiótica do profeta com o rei descrita na Bíblia.”
A verdadeira história de Moisés
Como um rei megalomaníaco, muita geopolítica e uma farsa de proporções bíblicas criaram a saga de Moisés - o herói que foi sem nunca ter sido
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Diz a Bíblia: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés, a quem o Senhor conhecia face a face”. Esta frase está no último capítulo do livro do Deuteronômio, logo após a narrativa da morte do herói. Tamanha intimidade com Deus teria permitido que o líder israelita visse o próprio Criador (ainda que não o rosto divino, que não podia ser vislumbrado) e recebesse das mãos dele as tábuas com os Dez Mandamentos, a base da legislação sagrada que judeus e cristãos veneram até hoje. De quebra, segundo a tradição judaica, os cinco primeiros livros da Bíblia, que compõem a parte mais sagrada do Velho Testamento, seriam obra de Moisés.
Só tem um problema: descobertas de historiadores e arqueólogos têm lentamente desmontado a saga de Moisés. O libertador dos israelitas talvez seja uma figura quase tão mitológica quanto Daenerys Targaryen, a heroína de Guerra dos Tronos. É verdade que um líder tribal chamado Moisés, ou algo parecido, pode até ter existido há 3 mil anos, mas basicamente nenhum feito atribuído a ele passa pela peneira do escrutínio histórico. Por outro lado, a saga que está na Bíblia não surgiu do nada. Ela é fruto de um longo processo histórico, que culminou na criação do monoteísmo. Essa saga, embora não contenha milagres e talvez seja complexa demais para virar novela, é tão fascinante quanto a narrada pelo Livro Sagrado. Vamos a ela.
A primeira pista para dissecarmos a verdadeira origem da lenda de Moisés está no nome dele e de seus parentes. Apesar de, segundo a Bíblia, todos eles serem israelitas, seus nomes não são em hebraico, a língua desse povo. As denominações “Moisés”, “Aarão” (seu irmão) e “Fineias” (seu sobrinho-neto) são derivadas do idioma egípcio.
“Moisés”, por exemplo, tem a mesma origem que as terminações dos nomes dos faraós Ramsés e Tutmósis. Os três derivam do egípcio antigo “msézs”, que significa “filhos de” – Ramsés, portanto, quer dizer “filho do deus Ra” (faraós não eram modestos). “No caso de Moisés, falta o nome da divindade da qual ele seria considerado filho”, destaca o teólogo Leonardo Agostini Fernandes, especialista em Antigo Testamento da PUC-RJ. Ou seja: o nome “Moisés” estaria para o nome “Tutmósis” assim como “son” está para “Anderson”. Não é um nome, mas um sufixo, que nem faz sentido sem o devido prefixo. Isso pode significar, primeiro, que o herói é completamente lendário. Segundo, que seus criadores queriam dar ao personagem um nome que soasse egípcio (já que o Egito era a grande potência da época), mas erraram a mão por não conhecerem bem a língua estrangeira. Mais ou menos como acontece hoje com quem batiza o filho como “Maicon”.
Mas por que inventar um personagem de nome “egipciado”, e não israelita (como seria se ele se chamasse “Saul” ou “Isaías”)? Provavelmente por causa do domínio que o Egito exerceu sobre vastas áreas do Oriente Médio no período final da Idade do Bronze (de 1500 a.C. até uns 1200 a.C.). Nessa época, boa parte dos territórios atuais de Israel, Palestina, Jordânia, Líbano e Síria não passavam de províncias egípcias, controladas pelos faraós com o auxílio de nobres vassalos das cidades-Estado da região.
Entre 1200 a.C. e 1100 a.C., porém, o império egípcio desmoronou – o motivo mais provável é que uma mudança climática tenha causado um período de fome, desestabilizando o Estado. E olha só: exatamente nessa época, como arqueólogos do século 20 descobririam, surgiu uma nova onda de assentamentos nas montanhas de Canaã: seriam os primeiros vilarejos israelitas, levantados no vácuo de poder que instalou-se em Canaã com o fim do domínio dos faraós. Essa comunidade, como qualquer agrupamento humano, tinha suas histórias – lendas para serem contadas em volta da fogueira. Uma dessas lendas provavelmente envolvia rebeldes egípcios que ajudaram a fundar a própria comunidade na periferia dos domínios faraônicos, conforme o governo se desmantelava. As figuras lendárias de Moisés (e de Aarão, e de Fineias) teriam nascido nesse momento de transição, como personagens de histórias orais, que cresciam e se multiplicavam de fogueira em fogueira, enquanto a comunidade israelita se firmava numa Canaã agora livre do jugo egípcio.
Quem conhece a Bíblia sabe que essa é uma realidade bem diferente da registrada ali. Só para recapitular: no Livro Sagrado, a comunidade israelita começou como uma família, por volta de 1900 a.C., cujo patriarca era justamente um homem chamado Israel (e nascido com o nome de Jacó). No fim da vida, Jacó/Israel sai de Canaã com seus filhos e netos. Sai para morar no Egito, onde José, outro de seus 12 filhos, é uma espécie de primeiro-ministro. A família cresce nos séculos seguintes até se tonar uma nação de mais de 1 mihão de indivíduos, encravada em pleno Delta do Nilo, bem longe de Canaã.
Essa nova nação, diz o texto bíblico, acaba escravizada pelos egípcios. Então surge Moisés, um descendente de Jacó que crescera como príncipe na corte egípcia. Ele liberta seu povo e termina guiando-o para Canaã, a terra que Jacó e seus filhos tinham deixado para trás 400 anos antes – a mesma terra que, lá atrás, tinha sido prometida por Deus a Abraão, avô de Jacó.
Na vida real, como a arqueologia deixa claro, não foi bem isso: a nação de Israel surgiu a partir de tribos que sempre haviam morado em Canaã mesmo. Eles eram cananeus da gema. Nunca, jamais, moraram no Egito. Muitos cananeus proto-israelitas (cujos netos e bisnetos formariam o povo de Israel lá na frente) certamente foram escravos de egípcios – inclusive dentro de Canaã, já que esse era o destino de vários habitantes de regiões dominadas. Daí teria surgido a história de que toda a comunidade israelita formou-se como nação enquanto era escrava.
Mario Liverani, arqueólogo da Universidade La Sapienza, em Roma, é um dos pesquisadores que defendem essa tese. Seu ponto de vista é o seguinte: com o passar dos séculos, as sagas sobre a libertação do jugo egípcio dentro da Terra Prometida passaram a ser contadas como uma fuga épica do Egito para a Terra Prometida. Simples assim.
Outra certeza dos historiadores é que Moisés não escreveu o quinteto inicial de livros bíblicos – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
As pistas a esse respeito são diversas, a começar pela presença de várias narrativas diferentes, e muitas vezes contraditórias, do mesmo evento nos livros supostamente mosaicos. Há, por exemplo, três versões diferentes dos Dez Mandamentos. Como ninguém imagina que Moisés andava se esquecendo das coisas e escrevendo a mesma história diversas vezes, com variações, a hipótese dominante desde o século 19 é que vários textos antigos foram costurados e editados para produzir o Pentateuco, os “cinco livros de Moisés”, que os judeus chamam de Torá.
Mais: todos os textos do Livro Sagrado foram escritos séculos depois do suposto Êxodo do Egito, que teria começado em 1446 a.C., segundo a cronologia bíblica. A redação dos primeiros textos data de, no mínimo, 800 a.C., época em que os israelitas já formavam uma sociedade próspera e organizada – ou seja, com exércitos, sacerdotes, escribas, burocratas; o único tipo de ambiente capaz de produzir obras literárias complexas. Essa fase teria começado quando uma dúzia de tribos se uniu nas montanhas de Canaã para formar um Estado propriamente dito, o reino de Israel. Em poucas gerações, porém, essa nação acabou dividida em duas: as rivais Judá, no sul de Canaã, e outra, ao norte, que manteve o nome antigo (Israel). A capital de Judá era Jerusalém, a cidade mais importante do reino original. Já os monarcas de Israel ( “Israel 2”, no caso) viviam na luxuosa Samaria.
Seja como for, os habitantes dos dois reinos podem ser chamados de “israelitas”. E foram os reis, sacerdotes e escribas israelitas, tanto de Judá como de Israel, que colocaram no papiro as histórias de beira de fogueira que seu povo contava desde 1200 a.C., 1100 a.C. Essas histórias, diga-se, se tornariam a coluna vertebral do maior best-seller de todos os tempos, a Bíblia.
Mas não foram só lendas que entraram ali. Os textos da Bíblia, afinal, também funcionavam como uma Constituição para os israelitas. Segundo o que foi escrito no Livro Sagrado, Moisés recebeu das mãos de Deus a parte mais importante dessa Constituição – os Dez Mandamentos. Mas, se Moisés provavelmente é um personagem fictício, e a hipótese de que Deus escreveu Ele mesmo os Mandamentos, como está na Bíblia, é questão de fé, não de história com “H” maiúsculo, nos resta uma pergunta:
Quem escreveu os Dez Mandamentos? Boa parte da lista dos Dez Mandamentos – “Não matarás”, “Não cometerás adultério”, “Não roubarás” – provavelmente é bem mais antiga que a Bíblia, já que nenhuma sociedade consegue funcionar sem esse tipo de regra. Mas a forma definitiva das leis é bem mais recente.
Quase todos os especialistas concordam hoje que a versão mais antiga dos Dez Mandamentos é a que consta no capítulo 5 do Deuteronômio, livro bíblico “publicado” pela primeira vez em 622 a.C. Nesse ano, segundo o Antigo Testamento, um texto conhecido simplesmente como o “Livro da Lei” ou “Livro da Aliança” foi descoberto dentro do Templo de Jerusalém e levado até Josias, rei de Judá.
De acordo com a Bíblia, essa obra seria a compilação original das leis dadas por Deus a Moisés, que teria ficado esquecida por séculos. De acordo com a maior parte dos pesquisadores, essa obra é o livro bíblico hoje conhecido como Deuteronômio.
Trata-se de um livro que contém vários discursos atribuídos a Moisés. Ali, o líder lendário do passado recita as centenas de leis tradicionais da comunidade israelita; as Leis de Moisés, entre as quais estão os Dez Mandamentos.
Ao tomar conhecimento do conteúdo do “Livro da Aliança”, diz a Bíblia, Josias ficou transtornado por perceber que seu povo não estava seguindo as leis divinas escritas ali. Não que Judá tivesse se convertido numa terra de adúlteros, ladrões e assassinos. Mas uma coisa era fato: enquanto o Livro da Lei falava o tempo todo que só existe UM Deus, Iahweh, e que cultuar outras divindades era um crime mortal, Judá era uma nação politeísta. Iahweh até era o deus principal. Mas tratava-se de apenas uma divindade em meio a tantas outras.
Leia: Os 18 Mandamentos
Josias, segue a versão bíblica da história, iniciou então um projeto ambicioso de reforma religiosa. Primeiro, fez uma leitura pública do livro sagrado para todos os moradores de Jerusalém, para mostrar que Moisés em pessoa, o maior personagem das lendas israelitas, repudiava o politeísmo. Depois destruiu as estátuas de deuses pagãos, que existiam no próprio Templo de Jerusalém, o santuário de Iahweh.
Ele ainda eliminou os altares tradicionais na zona rural, onde sacrifícios costumavam ser feitos a Iahweh. Dali por diante, a adoração ao deus dos judeus, aquele que séculos mais tarde se tornaria o Deus com “D” maiúsculo dos cristãos e muçulmanos, ficaria totalmente centralizada no Templo em Jerusalém. A Bíblia, por fim, elogia esse conjunto de medidas com toda a pompa: “Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como ele, para Iahweh, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés; nem depois dele houve algum que se lhe pudesse comparar.”
Só para lembrar: a história de Josias até aqui é a que está na Bíblia. Mas a verdade histórica sobre ele, ao que tudo indica, é outra, a que vamos ver daqui em diante. Para começar, a semelhança desse elogio bíblico com o que o Deuteronômio diz sobre Moisés no início desta matéria não é mera coincidência. É que, justamente na época de Josias, o Egito voltava a fincar garras em Canaã, coisa que não acontecia desde a fundação das primeiras comunidades israelitas, aquelas que contavam histórias sobre rebeldes libertadores em volta da fogueira, 600 anos antes de Josias.
De volta para o futuro. Os egípcios começam a avançar sobre Canaã na condição de aliados do Império Assírio, uma potência da Mesopotâmia (atual Iraque) que há séculos infernizava a vida dos israelitas. Em 722 a.C., os assírios haviam destruído o reino de Israel e anexado seu território. Nas décadas seguintes, chegaram perto de destruir Judá. O reino acabou poupado.
Mas Josias agora temia pelo futuro de Judá. Sob a pressão de egípcios e assírios, seu reino poderia ter o mesmo destino daquele reino de Israel original, que acabou dividido. Sem falar que Judá era pequena até para os padrões da Antiguidade. Com área um pouco maior que a da região metropolitana de São Paulo, o reino não resistiria se perdesse a unidade política. Viraria parte do Egito, ou da Assíria, e terminaria sua odisseia na Terra, como já tinha acontecido com tantos povos e culturas do Oriente Médio.
Mas Josias tinha um plano. Para dar a unidade que ele imaginava necessária ao seu reino, o soberano adotou uma ferramenta inédita: proibir o culto a deuses estrangeiros. Só Iahweh, o deus nacional, poderia (e deveria) ser cultuado. Era uma forma eficaz de evitar influências de fora, que eventualmente poderiam rachar a nação.
Até porque, pelo que a arqueologia revela, os israelitas sempre tinham acreditado em vários deuses. É o contrário do que diz a Bíblia, já que ali o monoteísmo começa bem antes, com Abraão, o avô de Jacó, e sofre apenas alguns “soluços” de politeísmo. Mas não: além de Iahweh, os israelitas cultuavam Baal, Asherah, El… – deuses que faziam parte da mitologia de Canaã desde mais ou menos 2000 a.C.
Josias, então, decide banir essa democracia ritualística com o propósito de fortalecer a unidade nacional. Como? Anunciando que encontrou um certo “Livro da Lei” perdido no Templo, um documento com quase mil anos de idade, contendo a palavra de Moisés, em pessoa. Um documento com o líder mais legendário ditando as leis “originais” dos Filhos de Israel. Na prática, aquilo servia como se fosse a Bíblia inteira, já que o Livro Sagrado, até onde se sabe, ainda não existia na forma como o conhecemos.
Na opinião de boa parte dos historiadores, essa forma final começava a nascer ali, sob a pena de Josias. O rei teria escrito ele mesmo (com a ajuda de sacerdotes e escribas) o “Livro da Lei”. Ele seria, então, o autor dos Dez Mandamentos. Ele teria criado a história na qual Moisés recebe as tábuas das mãos de Iahweh.
Agora, vamos convir: se você fosse um israelita típico, ficaria muito, muito tentado a obedecer essas leis. Nada podia ser mais fenomenal, mais sagrado, do que palavras escritas pelo deus nacional e entregues para o herói nacional, o homem que libertara seu povo da escravidão séculos atrás.
E, se você decidisse seguir mesmo essas leis, estaria fazendo exatamente o que Josias tinha imaginado: abandonaria seu politeísmo. Sim, porque, dos Dez Mandamentos, nada menos que três são ordens para desistir de uma vez por todas de venerar outros deuses. Tudo para não deixar a menor dúvida sobre o que significava ser um morador de Judá. Para aglutinar ainda mais a população, Josias implementou outra medida: o culto a Iahweh só poderia acontecer no Templo de Jerusalém. E uma nova religião nascia ali, em Judá: o judaísmo.
O “Livro da Lei” de Josias acabaria dando novas cores à história de Moisés. Agora o líder do passado não seria tratado apenas como libertador, mas também como legislador. O Pentateuco terminaria de ser escrito no século seguinte. E trechos do “Livro da Lei” iriam parar no futuro livro do Êxodo, que contaria a história de Moisés do jeito que ela é conhecida hoje – com a cestinha no Nilo, a abertura do Mar Vermelho (que provavelmente já era a lenda oral mais antiga dos israelitas) e, para fechar com chave de ouro, os Dez Mandamentos. A continuação da saga também ganharia sua forma final, com Josué, sucessor de Moisés, finalmente guiando o povo de Deus para dentro da Terra Prometida. Tudo numa grande ofensiva militar contra as cidades cananeias (e politeístas) da região. O ápice cênico, aliás, é a conquista da cidade murada de Jericó – outra história bíblica desmentida pela arqueologia, já que não havia uma cidade grande com muralhas na região quando Josué teria vivido.
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Outro episódio marcante que a historiografia ajuda a descortinar é aquele que envolve um certo bezerro de ouro. A narrativa bíblica diz que Moisés passou 40 dias e 40 noites recebendo instruções de Deus no alto do Monte Sinai. Cansados de esperar o profeta, os israelitas teriam pedido a Aarão, o sacerdote do Êxodo: “Faze-nos um deus que vá à nossa frente”. Usando milhares de brincos de ouro, Aarão forjou então a estátua de um bezerro e construiu um altar diante dela, no qual foram oferecidos sacrifícios.
Essa história também teve uma inspiração clara na vida real. É que outra figura do passado israelita era fã de bezerros de ouro. Trata-se de Jeroboão, primeiro monarca de Israel, o reino do norte, que mandou construir duas dessas estátuas, uma em Betel outra em Dan, uma em cada ponta de seus domínios. A ideia era rivalizar com o Templo de Jerusalém, em Judá.
É óbvio que o reino do sul não gostou da ideia. Tanto que, durante sua reforma religiosa, Josias fez questão de visitar Betel (que a essa altura pertencia oficialmente à Assíria, após o fim do reino de Israel) e destruir o altar-bezerro construído por Jeroboão.
Moral da história: a narrativa sobre o bezerro no Êxodo também teria sido retrojetada – ou seja, inserida no passado – para justificar uma ação que Josias tomou na vida real.
Só tem um problema: a Judá forte e unida forjada por Josias não se mostrou um projeto bem-sucedido. A Assíria tinha sido ela própria dominada por outro reino da Mesopotâmia, por volta do ano 600 a.C.: o da Babilônia. Judá, então, virou um mero peão no jogo de xadrez entre a agora poderosa Babilônia e sua eterna pedra no sapato, o Egito. Josias morreu com Judá ainda de pé. Mas seus sucessores, sem grande habilidade diplomática, tomaram decisões que levaram à destruição do reino – e à deportação de milhares de membros da elite judaica para a Babilônia, em 586 a.C.
O que a história de Moisés tem a ver com isso tudo? Bem, 50 anos após o fim do reino de Judá, as famílias dos deportados foram autorizadas a voltar para casa e reconstruir Jerusalém. Como os israelitas do Êxodo, tiveram de atravessar o deserto no caminho para a terra natal.
Talvez seja por isso que, no Deuteronômio, Moisés morra pouco antes de seu povo adentrar a Terra Prometida. Na versão final do livro, redigida pelos exilados que estavam voltando, Moisés sai de cena sem o prêmio de colocar os pés em Canaã. E fica a mensagem: a vida do libertador não precisava disso para fazer sentido. Tudo já tinha valido a pena.
Essa característica inspiradora, de certa forma, ajuda a explicar o poder que a saga tem até hoje. A jornada árdua pelo deserto rumo à liberdade motivaria vários outros povos a enfrentar seus próprios “faraós”. É o caso dos responsáveis pela declaração de independência dos EUA, no século 18, que construíram a primeira democracia depois da Grécia Antiga. Os revolucionários ali quase transformaram a imagem de Moisés abrindo o Mar Vermelho no brasão de seu país.
É isso. Acredite você ou não que a história de Moisés foi escrita sob inspiração divina, o fato é que isso não muda em nada a força da mensagem que está ali. Uma mensagem de superação e de luta por liberdade que moldaria a história do mundo séculos mais tarde. E que continua viva e influente, milênios depois de todos os impérios da Antiguidade que oprimiam a pequena Judá terem virado pó. Parabéns, Josias. Você venceu.
Bezerro sagrado
O bezerro de ouro não é exatamente um símbolo de idolatria. Ele ilustra a rivalidade entre Israel e Judá. Em Israel, bezerros dourados adornavam altares a Iahweh. Isso representava concorrência ao Templo de Jerusalém, que ficava em Judá. Como a Bíblia é em grande parte uma obra de Judá, o bezerro surge ali como o cúmulo da heresia.
Cabeça quente
Ao testemunhar o episódio de adoração ao bezerro de ouro, Moisés perde a cabeça e quebra as tábuas onde estão gravados os Dez Mandamentos, diz o capítulo 34 do Êxodo. Iahweh repõe o material destroçado, produzindo uma segunda versão. Só que esta surge bem diferente da primeira, como você pode ver no texto acima. Ou seja: na vida real, cada lista provavelmente foi escrita por um autor distinto, com décadas, ou séculos, de intervalo.
Dois templos, uma medida
Quase todos os fatos da vida de Moisés são episódios retrojetados – inseridos no passado para justificar ou sacralizar atos realizados no presente (o presente dos autores da Bíblia). É o que acontece no caso do Tabernáculo, o santuário portátil que, segundo o Livro Sagrado, os israelitas usaram nos 40 anos que passaram no deserto. A Bíblia diz que o Templo de Jerusalém foi inspirado nele. A verdade provavelmente é o oposto: o Tabernáculo seria uma obra de ficção inserida no passado para sacralizar ainda mais o Templo de Jerusalém.
Cenas dos próximos capítulos
Logo após a narrativa do Êxodo, vem outra, a da Conquista da Terra Prometida – que começa com a queda das muralhas de Jericó ao som de trombetas. O episódio da Conquista também não tem base histórica, e provavelmente foi criado entre o reinado de Josias e o exílio na Babilônia.Quase todos os especialistas em história de Israel concordam que a versão mais antiga dos Dez Mandamentos é a que consta no capítulo 5 do Deuteronômio, livro bíblico “publicado” pela primeira vez em 622 a.C. Em outro trecho da Bíblia, no capítulo 34 do Êxodo, ao testemunhar o episódio de adoração ao bezerro de ouro, Moisés perde a cabeça e quebra as tábuas onde estão gravados os Dez Mandamentos. De acordo com o relato, Deus (Iahweh) repõe o material destroçado, produzindo uma segunda versão. Só que esta surge bem diferente da primeira, como você vê a seguir.
Os Dez Mandamentos, Versão 1
(Deuteronômio, 5 e Êxodo, 20)
Esta é a versão consagrada dos Mandamentos. Nas duas partes da Bíblia em que ela aparece, há apenas uma mudança, no número III.
I – Eu sou seu Deus, eu o tirei do Egito. Adore somente a mim e não construa imagens de outros deuses ou de outras criaturas.
II – Não use meu nome em vão.
III – Lembre-se de santificar o dia do sábado e de não trabalhar nele. Até seus escravos devem descansar, porque você foi escravo no Egito e eu tirei você da escravidão.
(Em Êxodo 20 o trecho que aqui aparece em destaque é outro: “…, porque o Senhor criou todo o Universo em seis dias e descansou no sétimo”.)
(Em Êxodo 20 o trecho que aqui aparece em destaque é outro: “…, porque o Senhor criou todo o Universo em seis dias e descansou no sétimo”.)
IV – Honre seu pai e sua mãe.
V – Não cometa assassinato.
VI – Não cometa adultério.
VII – Não roube.
VIII – Não minta ao testemunhar no tribunal.
IX – Não cobice a mulher do próximo.
X – Não cobice as coisas alheias.
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Os Dez Mandamentos, versão 2
(Êxodo, 34)
As mudanças em relação à versão 1 aparecem em negrito. Somados aos mandamentos de Êxodo 20, são 18 Mandamentos
I – Expulsarei todos os povos inimigos habitantes da terra que darei a você e à sua família, mas para isso você tem de destruir todos os deuses e altares deles.
II – Não faça qualquer aliança com os moradores da sua nova terra.
III – Não construa imagens de deuses com metal fundido.
IV – Realize todo ano a festa dos pães sem fermento, durante sete dias.
V – Todos os animais e seres humanos do sexo masculino que são os filhos mais velhos são meus. Os animais deverão ser sacrificados, enquanto os humanos serão consagrados a mim.
VI – Trabalhe apenas seis dias por semana e descanse no sétimo.
VII – Realize todo ano a festa da colheita, oferecendo a mim os primeiros frutos de sua lavoura.
VIII – Não misture pão fermentado aos sacrifícios de animais feitos em minha honra. Não guarde o cordeiro sacrificado na Páscoa para o dia seguinte.
IX – Traga os melhores frutos do começo da colheita para o meu Templo como oferenda.
X – Não cozinhe cabritos no leite de sua própria mãe (interpretado pelos judeus como uma proibição a qualquer carne com qualquer derivado de leite – x-burguer não pode, por exemplo).
Em junho de 1886, o arqueólogo francês Gaston Maspero – quase um Indiana Jones da vida real – explorava Deir el-Bahari, um enorme complexo de sepulturas e templos para rituais fúnebres localizado em Luxor, no Egito. Em meio as múmias típicas, embalsamadas com cuidado e repletas de adornos, encontrou um caixão incomum: liso e tosco.
Não parecia o tipo de lugar em que um nobre egípcio gostaria de passar a eternidade. A religião dos faraós só garantia a vida após a morte se o corpo fosse preservado com carinho. Mais decoração e mais objetos no túmulo aumentavam as chances de conseguir uma passagem só de ida para o além (e de ter um padrão de vida elevado por lá).
Quando Maspero abriu a tampa, a situação só piorou: o corpo era de um homem jovem, com uns 18 anos. Ele estava embrulhado em pele de carneiro, considerada um material impuro, proibido em rituais religiosos. Seus pés e mãos estavam amarrados, e sua boca, aberta em um eterno grito fantasmagórico.
Múmias comuns têm cortes no abdômen, por onde foram retiradas as vísceras – um dos passos obrigatórios da mumificação. O “homem desconhecido E”, como foi batizado friamente pelo egiptólogo francês, não tinha. Ele foi embalsamado no improviso, com estômago e tudo. A autópsia realizada no século 19 chutou algumas explicações para sua boca eternamente aberta: ele pode ter sido enforcado, envenenado ou enterrado vivo. Difícil de saber.O maior mistério, porém, era outro: por que um plebeu impuro, morto violentamente, ganhou o direito de descansar em um lugar dedicado aos reis? A resposta só chegou mais de um século depois, com uma análise genéticapublicada em 2012. O dito cujo tinha o cromossomo Y igualzinho ao do faraó Ramsés III, que reinou por 31 anos, entre 1194 a.C. e 1163 a.C. De plebeu a múmia renegada não tinha nada: ela era de um príncipe.
Foi aí que a arqueologia e os registros escritos se casaram perfeitamente. Ramsés III foi uma espécie de Júlio César do Nilo, vítima de um golpe armado por seu filho, Pentawere, e sua segunda esposa, Tiye. Problema típico de família real: o filho que tinha direito a herdar o trono era o da primeira esposa, e nem Tiye nem Pentawere curtiram essa história. Um papiro, hoje armazenado em Turim, na Itália, conta o julgamento dos traidores, mas não o desfecho do caso.
Sabe-se que Ramsés III foi mesmo assassinado: sua múmia tem um corte no pescoço, que alcança o esôfago e foi a provável causa da morte do faraó. Também se sabe que Amonhirkhopshef, o filho da primeira esposa, foi mais malandro: tomou o trono antes que Pentawere completasse o golpe, e mandou capturá-lo. Pentawere, por uma questão de honra, pode ter se suicidado antes da execução – e é aí que entra o veneno ou o enforcamento.
É claro que isso não responde tudo: ainda é preciso explicar como os serviçais do rei permitiram que o traidor, depois de morto, fosse deixado em companhia de seu pai. É por isso que arqueólogos ainda consideram teorias alternativas. Talvez o “homem desconhecido E” fosse um militar célebre, morto em campanha em um país distante e embalsamado com os materiais disponíveis por lá. Afinal, pele de carneiro pode até ser ruim, mas se o serviço for feito com a melhor das intenções, dá para negociar uma exceção com os deuses.
Quantos foram os faraós do Egito Antigo
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(ewg3D/iStock)
Quantos foram os faraós do Egito antigo? Como se separam as dinastias?
Ronaldo Baptista, Brasília, DF
Ronaldo Baptista, Brasília, DF
Historiadores se baseiam em pelo menos quatro documentos para contabilizar os faraós: a Pedra de Palermo, a lista real de Abidos, o papiro de Turim e os registros de Maneton.
Descontando as redundâncias, são 170 faraós que reinaram no Egito em ao menos 30 dinastias.
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